"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

domingo, 18 de outubro de 2009

Não é feitiçaria, é tecnologia.

Não é novidade para ninguém – acredito que entre os caros leitores não o seja -, que o mundo passou nas últimas décadas por transformações tecnológicas impressionantes. A palavra tecnologia , assim como tantas outras que utilizamos, vem do grego, e pode-se sugerir como significado a idéia de “estudo do ofício”. O importante de buscar na raiz o significado das palavras é que isto nos leva diretamente para o seio de determinada cultura ou civilização, informação esta que pode acrescentar na compreensão dos valores envolvidos no uso de tal palavra. Como se sabe, a cultura que vivemos hoje é predominantemente ocidental, o que significa dizer que tem suas origens basicamente nas tradições grega e romana. Nesse sentido, a tecnologia está em sintonia com os padrões culturais que sustentam grande parte do Ocidente.

Isso não significa dizer que a tecnologia seja uma especificidade da cultura ocidental. Pelo contrário, muitas culturas e civilizações desenvolveram tecnologias antes mesmo dos gregos. O que interessa aqui é marcar em qual tradição cultural a atividade humana que se desenvolvia em outros grupos foi inserida no domínio da linguagem. Isso significa, em outros termos, que a tecnologia passa por um processo adicional de legitimação, que nada mais é do que reconhecimento coletivo.

Isso explica em grande parte porque as tecnologias são, apesar de suas especificidades, um elemento estrutural das sociedades, principalmente as sociedades modernas. E pode explicar também porque elas se difundem universalmente, com considerável rapidez. O caso emblemático é, sem dúvidas, a internet.

Não vou me atentar a tecnologia a priori, que é o computador, a máquina que revolucionou o mundo ao mudar padrões de trabalho e sociabilidade e substituir pessoas. O fato é que existindo o computador, veio a internet, que definitivamente trouxe ao ser humano a possibilidade de repensar seu próprio papel na sociedade e o papel da sociedade na nossa vida.

“É preciso estar presente para se comunicar? Trabalhar? Interagir? Relacionar? Amar? É preciso me locomover para consumir? Visitar lugares? Conhecer pessoas? Informar-me?É preciso mais que um computador para criar? Ler, escrever, desenhar, musicar? Conhecer, aprender, aperfeiçoar?”

A resposta da internet é unívoca: eu sou a chave-mestra. Venha comigo, e tudo será possível. E o melhor ainda está por vir.

Nós, enxadristas, somos presas fáceis para o tipo de oferta que a internet nos traz. Atividades introspectivas, acesso ao conhecimento, a prática, a informação, a treinamento, enfim, uma verdadeira revolução na nossa forma de relacionamento com o jogo de xadrez e, mais importante, com o mundo do xadrez. Um mundo que envolve pessoas, mas também máquinas que jogam – não que pensam, mas que calculam, logo, profundamente diferentes da capacidade complexa de reflexão e racionalização dos seres humanos.

A internet invadiu o mundo do xadrez assim como nossas vidas. Qual enxadrista hoje consegue não interagir com este universo? Vejam só vocês, eu aqui no planalto central sendo “ouvida” por milhares (assim espero) de pessoas, tudo isso possibilitado por esta ferramenta tecnológica. Eu, que aprendi a jogar xadrez na escola sem o Pequeno Fritz*, tinha como oportunidade de aperfeiçoamento os encontros com os colegas no clube de xadrez de Batatais para jogar ao vivo e a cores. Ler era em revista, livro, aliás, com aquelas anotações antiiiiigas... Sem interação a distância, sem a menor possibilidade de enfrentar um adversário de outro país, por exemplo. Aguardando ansiosamente os torneios para saber das novidades dos demais enxadristas, já que a comunicação era escassa...

ICC, Free Chess, Orkut, Twitter, You Tube, Google, Msn, Skype, Fritz On Line, Chess Base.com, Clube de Xadrez On Line, Blogger, enfim… Todos são caminhos que levam você até o xadrez, tanto ao jogo quanto ao mundo. Aqueles que, assim como eu, não nasceram na era da internet mas foram cooptados por ela, são capazes de perceber essa diferença entre o antes e o depois.

Melhoras? Sem dúvida! Acredito que a internet seja a grande responsável pela democratização do xadrez e o salto qualitativo entre os jogadores, particularmente os mais jovens, aqui no Brasil. Mas é preciso cuidado para não substituir. Quem já não ouviu o comentário em um torneio ao vivo de que “me faltou um mouse ali”?

É preciso não se (super)impressionar com a capacidade de um computador conectado a rede mundial, achando que isto é o mundo do xadrez e a única maneira – ou talvez a mais perfeita -, de se jogar xadrez. Ganhar um blitz na internet de um GM no ICC não significa que isto se repetirá ao vivo... Mas é preciso valorizar a possibilidade de ter tal experiência. Mas jogo ao vivo é jogo ao vivo. Xadrez suado faz toda a diferença. O Fritz, materialista que é, calcula o mate, mas não a capacidade de determinado jogador, tremendo de nervosismo, executá-lo quando está com 15 segundos...

Não sou reacionária e, como disse, me beneficiei muito com essa new wave interativa da internet. Meu xadrez também tem acesso a mais conhecimento, a mais partidas jogadas, a mais treinos. Mas é preciso ponderar e refletir sobre as mudanças. Ela aconteceu e os enxadristas apenas afirmam: “é, o xadrez não é mais o mesmo”.

Não podemos nos esquecer: não é feitiçaria, é tecnologia. Produtos de homens e mulheres, mentes e não máquinas pensantes.





* Pequeno Fritz é um software desenvolvido pelo mesmo criador do Fritz que incorpora tecnologia de computação gráfica para ensinar crianças a jogar xadrez.