"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

terça-feira, 3 de julho de 2007

Alegria! Alegria!

Para Wanderley Cason Melo, o Canarinho. Seu vôo não foi em vão, meu caro.

E não é que depois do café ele aparece, semblante tranqüilo, sorriso amarelado, o cigarro sempre na boca. “Como você suporta fumar isso?” – era a pergunta recorrente. “Você não viu nada, tem coisas muito piores.” – resposta recorrente. Passava a mão no rosto, como um tique nervoso. E sorria. O diálogo era sempre leve e cheio de tiradas bem pensadas porque espontâneas, passadas somente no filtro mais generoso, que é o coração. E era cada diálogo...

O curioso era que tudo surgia na análise das partidas. A rotina era a mesma: uma mesa, muitas cadeiras, muitas pessoas, um tabuleiro, peças, eventualmente um relógio perdido, muitas mãos. Todas elas opinando. Mãos de todas as idades. Não basta pensar o lance; tem que participar. E sempre era assim, desde o começo.

E não falo do meu começo, falo do começo dos tempos. Daquele começo que começava sempre com um chamado: “E então, vamos ver o que aconteceu?”. As discussões eram acaloradas, pois todos buscavam a verdade. Raramente havia concordância, e isso tornava aquele momento mágico. Mágico porque todos discordavam profundamente, e então se aprendia algo. Todos aprendiam. A discórdia sábia dos que se abrem a novas opiniões, a novos olhares sobre a mesma coisa: o tabuleiro e as peças.

Não se falava só sobre xadrez. E mesmo quando o foco era ele, não era nada convencional: trilha sonora, expressões inventadas, análises bizarras... Ensinamentos poéticos: “O importante é jogar o mais simples. Essas complicações aí... Isso é bobagem. Joga Be2, tranquilinho... E vai dar tudo certo. Deixa o bispo ali, pra que levar ele para longe?”. Sim, as peças ganhavam vida, tinham personalidade e saber ouvi-las naquele momento era o mais importante: “A torre está tão bem aí em e1... Pra que tirar ela daí? Qual a idéia? Deixa... Em e1 ela tá bem mais feliz.”. “Vixe, aqui tá perdidinho...”. Era isso. Ou quase isso. Ou tudo isso.

Nas viagens, o banco da frente era lugar cativo. “Também, com esse tamanho de perna...”. Ninguém se importava. O co-piloto mais bem-humorado: “Você sabe onde está indo? Tá virando pra lá, pra cá, com uma confiança...”. Risadas, muitas risadas. Lágrimas de riso.

Depois da análise, vinha a boemia. Uma cervejinha para descontrair, caipirinha sem açúcar... “Isso é pinga com limão!” – “Nada, é que açúcar faz mal.” Uma lucidez repentina sobre a posição. “O que tá acontecendo? Você tá meio nervosa, fazendo uns lances esquisitos... O que você anda estudando? Essas sicilianas malucas não é para você não... E essa fixação por rocar grande, hein?”. Descobertas sobre a vida além-xadrez. Notícias sobre família, filhos, netos. O enxadrista no dia-a-dia. Paixão pelo Cinema. Sabedoria sobre a Literatura. Experiência de uma vida dedicada ao xadrez.

“Sabe por que esse jogo é bonito? A gente joga, joga, estuda, estuda... E nunca sabe como ganhar desse danado! O xadrez sempre te vence.”
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
-Paulo Leminski-

4 comentários:

TIEPO disse...

lindo o texto!
parece que as vezes algumas coisas precisam mesmo acontecer pra arregaçar os olhos da gente!

Anônimo disse...

Conheci pouco do Canarinho, quase nada.Talvez eu me arrependa disso.

Parece-me que ele foi um grande homem, com grandes feitos e dedicadíssimo.

Bom texto, muito bom.

Beijos

Capivarando disse...

Parabéns! Continue voando e ensinando a voar os que pensam que não podem...

PC disse...

Taís,

É como sempre digo, há pessoas que nasceram para dar vida às coisas,ao mundo inanimado,e com sua presença desperta mais vida em outras pessoas que já não são mais tão alegres, desgastadas pelo tempo longo da teimosia de tudo! Essas pessoas são realmente indispensáveis, inventaram a alegria de viver...

PC