"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Eis a cena

Uma partida de xadrez nunca começa no instante em que o primeiro movimento – das brancas sempre, nunca se esqueçam disso -, é realizado. Os jogadores de alto nível têm nos mostrado cada vez mais essa máxima, já que gastam dias, os exagerados meses, se preparando para determinada partida contra determinado adversário jogando com uma determinada cor uma determinada variante de determinada abertura jogada em determinado torneio em determinado ano. Com tantos determinantes, é possível ainda alguma surpresa?

Sim, sempre haverá as surpresas em uma partida de xadrez. Não importa o quanto você esteja preparado, ela dará as caras no momento menos esperado, configurando assim a surpresa. E por que isso é uma máxima? Porque o xadrez é humano, demasiado humano.

A surpresa em uma partida desperta sentimentos ambivalentes, já que para aquele que a realiza representa uma força extra incalculável em rating FIDE. Para o que leva o golpe, hummm... Aquela sensação de fraqueza, de que algo escapou de seu controle, e da necessidade redobrada de manter a calma.

Tudo isso que foi dito é introdução. Agora vem o que interessa. Eis a cena:


Dois mestres internacionais vão se enfrentar em um torneio. É um torneio fechado, daqueles em que os jogadores presentes são convidados. Vale tudo: rating FIDE, norma de mestre, só chute embaixo da mesa que não vale. Todos enfrentarão todos, como de costume nos torneios fechados. E agora eles irão se enfrentar.

Um deles chega atrasado. Não muito, cerca de dez minutos. O outro está tranqüilo tomando um café, um semblante de confiança, como se esperasse sua presa que tarda, mas não falha. E ela chega.

Sentam-se simultaneamente, cumprimentam-se. O atrasado ainda se dá o luxo de preencher a planilha antes de iniciar de fato a partida. Ele está de pretas e anota calmamente o lance branco. Respira fundo, cumprimenta novamente o adversário. E agora começará.

Ambos estão jogando ao toque. Isso significa que ambos estão querendo demonstrar que sabem o que estão fazendo, e sabem tanto que são capazes de fazê-lo rápido, sem pensar, demonstrando que muito já foi pensado antes dessa movimentação automática das peças. E isso se segue até o 19° lance: Tec! Tec! Tec! Tec! Tec! Tec! O relógio não tem tempo nem para respirar.

Um silêncio repentino. Fúnebre. Finalmente ela chegou, a surpresa. Acabou a teoria, hora de pensar. Um lance inesperado, completamente inesperado. O pontual de arruma na cadeira, e o atrasado olha vagarosamente seu adversário sentado ali, bem a sua frente, com certo ar de crueldade, de quem sabe que ali alcançou alguma superioridade. A velocidade com que ele movimenta os olhos do tabuleiro para o rosto de seu adversário parece ensaiada de tão perfeitamente contínua. O atrasado toma um gole de café. Fica observando. O pontual quase não se move. Se não fossem seus olhos atentos e agitados que acompanham as casas do tabuleiro de maneira aparentemente desconexa, ele estaria imóvel naquela cadeira. Seu café está esfriando e ele nem se importa. A surpresa agindo...

Não me lembro o resultado desta partida com certeza. Se não estiver enganada, foi um empate. Mas da cena, essa sim, me lembrarei sempre. Com detalhes.