"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

domingo, 14 de outubro de 2007

Xadrez não é ciência.

O bom de escrever esse tipo de coisa que escrevo aqui – crônica? artigo? ensaio? diário? tanto faz. -, é que não preciso me apoiar em nada mais do que minhas opiniões, reflexões e argumentos para me fazer entender. Pelo menos é assim na maioria das vezes. As coisas que faço na minha vida – ler, por exemplo -, também influencia, é claro; mas essa é a parte menos importante, acreditem. Quem quiser acreditar que acredite. Quem quiser concordar, concorde. Discordar a mesma coisa. Mas o interessante mesmo é tornar pública as idéias, as impressões, as verdades e mentiras. Isso sim que vale a pena.

Já na ciência não. Se eu estivesse escrevendo ciência – produzindo ciência, como costumo dizer aos meus amigos -, a estória seria bem diferente. Para começar, seria história e não estória. O fato é que até mesmo para falar de ciência cientificamente isso aqui teria de se tornar algo definível e nada animador: objetivo. Sei que haverá multidões apontando que a ciência não é objetiva, que a própria escolha do objeto de pesquisa científica já é uma atitude subjetiva, já que é escolha... Tudo bem, eu concordo com tudo isso. A questão relevante aqui é que na ciência a objetividade é um fim, não o meio. É o que deveria ser, é o parâmetro, é o desejável. Esse é o aspecto da ciência que mais me chateia.

Mas tem um lado que me parece mais promissor e positivo da ciência. É justamente interpretá-la como uma forma de conhecimento, assim como a religião, o jogo, a filosofia, entre tantas outras formas de conhecer o mundo. É mais uma forma que encontramos para saciar nosso desejo incontrolável por saber. Saber tudo e mais um pouco.

Veja que no meio do parágrafo anterior está inserida a palavra “jogo”. E como vocês devem saber, o xadrez é um jogo. Nosso amor incondicional e vício acabam nos levando a pensar que o jogo de xadrez é o jogo, o mais representativo de todos, o mais importante. Eu concordo com isso também. Mas minha mãe, que adora jogar damas e torrinha diz totalmente o contrário. Porém, o importante de destacar aqui é o seguinte: quando as pessoas afirmam por aí que o xadrez é ciência – sendo estas pessoas em sua maioria enxadristas apaixonados pelo jogo -, elas o estão fazendo por um motivo bastante razoável e por vezes sutil de perceber, mas que não torna a afirmação necessariamente verdade.

Historicamente a ciência assumiu em nossa sociedade – isso mesmo, essa ocidental, impregnada de idéias desenvolvidas há mais ou menos dois séculos atrás com o movimento iluminista europeu -, um papel bastante relevante, de respeito e prestígio entre nós, chegando mesmo a ser concebida por alguns como a única maneira de descobrirmos a verdade. Balela. Repito: ciência é um tipo de linguagem que utilizamos para conhecer o mundo. O que é uma função bastante nobre, mas não a única, muito menos a verdadeira razão da humanidade.

Isso aplicado ao jogo de xadrez nos levou a crer que, elevando o xadrez a categoria de ciência, estaríamos enfim colocando nossa linda modalidade em um patamar que ela merece, ou seja, em um dos elementos mais valorizados da nossa sociedade. É possível fazer ciência usando o jogo de xadrez? Claro que sim. Mas isso não significa que o xadrez seja uma ciência. O xadrez, pensando nessa lógica de categorias ou elementos da sociedade, seria o que a maioria das pessoas sabem e por vezes menosprezam sem saber o significado: um jogo.

O jogo é um elemento presente na história das sociedades humanas há bastante tempo. E assim sendo, já foi e ainda é objeto de pesquisas científicas. O fato de algo poder ser estudado pelas vias da ciência não implica necessariamente que esse algo seja, em si mesmo, ciência. A ciência trabalha na busca de elementos presentes em nossa vida que possam ser estudados por uma perspectiva particular e que diferencia o olhar dado a determinados aspectos de nossa mesma vida. Agora vou usar como exemplo um recurso muito utilizado na produção científica, que é citar o estudo ou reflexão de alguma outra pessoa – chamado no linguajar científico de autor-, para embasar meus argumentos e mostrar que não estou sozinha na minha reflexão. O que pode ser um gesto muito nobre, mas também bastante perigoso nas mãos erradas. Que o diga as citações de cientistas utilizadas por Hitler na justificativa da superioridade de determinadas raças em detrimento de outras. Eis a citação:

“[o jogo é] uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana.” (HUIZINGA, 1980).

Isso é um exemplo de estudo do jogo como tema científico. Notem o rigor da tentativa de uma definição. Agora que ele está dizendo a verdade, isso é impossível afirmar. Até que alguém diga e redija algo melhor, que convença mais pessoas, ela continuará sendo a definição mais viável, mais consensual. Nestes termos, o xadrez como é um jogo estaria contido nessa definição aí em cima. Mas me digam: é isso mesmo? Ou melhor, é só isso mesmo?

Cadê as mãos geladas e o tremor antes das partidas? Resumidos na palavra “tensão”? E a lágrima sufocada de tanta satisfação de ter ganho uma partida completamente perdida? Na parte da “alegria”? Pode ser que sim. Mas isso não exclui todas as possibilidades de desenvolver esta idéia, nem de pensar e escrever de outra maneira sobre o jogo de xadrez. O que os informadores e News In Chess da vida fazem é uma tentativa de instrumentalizar métodos científicos no estudo de xadrez, o que é possível e tem se provado eficaz, mas definitivamente não é a única maneira de refletir sobre o jogo de xadrez. E mais: esses estudos pseudo-científicos (e não estou usando no sentido pejorativo, mas sim no sentido de quase-ciência) são para o jogo de xadrez competitivo, esportivo. O jogo de xadrez interpretado e estudado como arte trabalha muito mais com elementos um tanto estranhos a ciência, como a criatividade.

Então vejam, sem polêmicas: o xadrez NÃO É ciência. Ele pode ser, mas não é, no sentido literal da frase. Ele pode ser o que nós quisermos, tamanha a sua amplitude. Mas se fosse para afirmar uma generalização, um É padronizado, ele É UM JOGO. E isso é uma riqueza tamanha, é o que permite, por exemplo, que ele seja meu mote, meu tema de escrita e a forma que uso para refletir sobre a vida e os fatos e idéias que por ela passam. É o que possibilita que pintores ao longo do tempo retratem sua imagem em seus quadros de forma magistral. É também o que está presente quando duas crianças estão jogando. Tudo depende de interpretações e da intencionalidade de quem o aprecia.

As possibilidades são muito mais interessantes do que as afirmações. E sabem porquê? Porque são infinitas. As afirmações não o são porque esbarram na realidade e seus fatos. As possibilidades são possíveis, não afirmativas. É o que faz com que você, leitor, possa ou não me dar crédito. Nada disso aqui é verdade, é possibilidade. É jogo... de palavras. Minha interpretação vocês já sabem. A intencionalidade, essa é um segredo meu. Mas é possível que vocês me perdoem por essa mentirinha...