"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O sentido da repetição

O tema me parece muito oportuno para a data de publicação: hoje, dia 31 de dezembro de 2008, estamos no início do fim, e muito em breve no início do começo. Essa sucessão de começos e términos sugere um ciclo, algo que se movimenta em torno de um sentido em grande medida construído a partir da repetição.

Todos os anos se repetem, isso é fato. Há um texto muito divulgado de Carlos Drummons de Andrade que aborda a questão do calendário, muito em voga nesses tempos de certa nostalgia misturada com comilança. Diz o seguinte:


“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano
se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra
vez com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui para adiante vai ser diferente...”


Mas vejam, há um detalhe importante. Apesar da repetição, uma das idéias presentes neste texto de Drummond é a possibilidade da diferenciação, o que aparentemente – percebam, somente nas aparências -, parece contradizer a idéia do repetir. E é nisto, justamente neste pequeno grande detalhe que eu vejo a exploração – a extrapolação, se assim preferir-, de uma característica do jogo de xadrez.

Ao pensarmos em uma partida de xadrez, estaria descrevendo o óbvio ululante se falasse das regras que compõem o jogo. Este é o elemento que, sem dúvidas, mais se repete. Não direi que se repete sempre porque existem os erros, em que a regra pode ser desafiada ou pela ignorância ou pela desatenção – ambas características humanas, demasiada humanas. O fato é que a regra exige, por definição, a repetição para fazer sentido; e o xadrez precisa das regras – também por definição -para que se torne um jogo. Logo...

Jogar uma partida de xadrez é repetir, repetir, repetir tantas vezes for necessário uma tábula de leis. E não só isso. O próprio aprimoramento no jogo relaciona-se com a compreensão mais apurada do sentido da regra, em outras palavras, em como repetir cada vez melhor, cada vez mais preciso. Repetir é preciso.

Além disso, a repetição é uma das muitas ferramentas que dispomos para estudos enxadrísticos. Ao montarmos uma, duas, dez vezes um determinado diagrama ou reproduzirmos uma sequência de uma variante, lá está ela, a repetição, nos auxiliando no processo de memorização e, por consequência, de aprendizado.

Mas repito: a repetição não negligencia a diferenciação, a possibilidade do diferente acontecer. Meu argumento tornar-se-á plausível com a ajuda de você, leitor. Por favor, pense em suas dez últimas partidas com uma determinada cor, de brancas por exemplo. Certo. Agora analise quais foram as aberturas jogadas. Considerando que, ao menos, metade delas seguiram a mesma variante – sim, você não deve ser tão ousado ao ponto de não repetir, pelo menos três vezes, aquela danada de abertura que você viu o GM X jogando na Olimpíada, obtendo um ataque fulminante ao rei, na esperança de que o resultado seria tão eficiente quanto... Responda: a mesma abertura levou a partidas iguais?

A repetição no xadrez se assemelha mais com a função desta na arte. Li em uma dessas revistas de arquitetura que, ao decoramos um lugar simples e com poucos recursos, a repetição de objetos aparentemente sem grandes impactos em termos de ambientação tem efeito impressionante. Os exemplos chegavam a ser engraçados: uma mesa foi colocada no canto de uma sala, com um vaso de flores vermelhas miudinhas. Na outra foto, a mesma cena, só que na mesa estavam agora três vasos de flores vermelhas miudinhas. O mesmo tipo de comparação foi feito com outros objetos, e sempre o mesmo impacto visual de valorização, incrivelmente criativo.



Um exemplo de como a repetição pode ser criativa e diferente.

Eis meu ato final: a repetição representa, antes de tudo, um componente de criação. O resultado é mais eficiente que o caminho percorrido, porque de fato a repetição diz respeito a movimento, e não a imobilidade. Oras, é no movimento que a criação floresce, a criatividade se esbalda e a mente ferve.
***
Repetir o erro ensina mais do que repetir o acerto. Porque nos damos ao trabalho de explicar os erros; já nas vitórias estamos muito ocupados em contemplar nosso ego. Vale no xadrez, vale na vida. E, quem sabe, vale como reflexão para 2009.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A tal hegemonia russa... (Ou uma interpretação sobre um universo particular)


Esse título parece até humorístico. Mas não é, eu garanto. É a mais pura verdade: os russos dominam o xadrez de tal modo que podemos dizer sim, com ou sem reticências, que eles são a hegemonia no xadrez. As reticências entram, então, para deixar no ar a dúvida, o mistério e a curiosidade não invasiva de entender porque, ou melhor, os porquês, no plural e com acento. Porque os motivos são substantivos, e eu tenho uma idéia sobre um deles.

Vejam a literatura russa. Eu tive contato com ela recentemente por duas linguagens: o teatro e o livro. Textos que tomam vida de forma diferente. Em ambas tive a oportunidade de perceber uma característica que me saltou aos olhos. Como toda arte que se preze, e que se sustenta no tempo, ela diz algo sobre o universo em que é criada, imaginada, diz sobre as pessoas que estão ali, mesmo que isso não seja verdade. A arte tem algo a dizer, e isso é inquestionável. O que ela diz é interpretação, e talvez a percepção coletiva de determinados aspectos crie o consenso, e a estética num segundo momento. Mas vejam: os russos, o povo russo, e a pessoa russa sofrem de uma frieza impressionante. Explico-me.
Eles são de natureza introspectiva, falam pouco e quando dizem, dizem muito. São breves e objetivos, diretos, e talvez por isso às vezes alcancem a crueldade quase sem querer. Notem que eu disse quase. Quase porque são irônicos, e orgulhosos disso. Sustentam uma imagem egoísta e independente, apesar do sofrimento e da dor. Apesar do comunismo e uma projeção forjada do que seja, então, esse tal "coletivo", esse eu que somos nós e que diz nada sobre ninguém.

[Cito uma passagem da peça "Não Sobre o Amor" - título sugestivo para uma obra russa, não? - que diz: "Porque quando você me diz o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, no terceiro quanto eu já estou pensando em outra coisa..."]

E por tudo isso chegam a uma profundidade admirável, compreendem a fundo e, portanto, parafraseando Pessoa, vêem muito e entendem muito o que tem visto. Observadores atentos, detalhistas do cotidiano, sugando a grandeza do pequeno e, diante do grande que são, tudo fica enorme. A dor, principalmente. E repito: sofrem. Desesperadamente. De terno e gravata. E um livro de xadrez na mão.

O xadrez entra nesse universo como ponte entre toda a profundidade e a compreensão do ser, e a projeção egoística desse conteúdo em um plano, o tabuleiro. Ali pode, e segundo os russos, deve-se ser cruel. Mas com estilo e elegância, sempre. Ali a precisão é louvada, e os detalhes somados ao entendimento da complexidade tornam-se belos, extremamente belos e univocadamente os melhores até hoje visto.

Menciono dois artistas: Kasparov e Karpov. O primeiro com sua ousadia arrebatadora, criatividade invejável e precisão assustadora. O segundo, com posições elegantes e limpas, abarrotada de detalhes sórdidos e belíssimos, calculados sem alteração das expressões faciais e olhares breves direto ao olho do oponente. Eis duas belas representações do espírito artístico russo, aplicado a uma arte, o xadrez.

Seremos nós, brasileiros do samba de bamba, capazes desse ceticismo todo diante do jogo, ou seja, da vida? Fica a questão que não sei responder. Mas perguntas valem mais que respostas em determinados momentos, como estes:



ontem

hoje

sempre

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Xadrez e Poesia

LEIS DA GUERRA
-por paulo LEMINSK-
Nunca provoque.
Se sentir provocação, negocie.
Se for impossível negociar, ataque.
Mas ataque rápido, muito rápido,
com toda a força.
Não faça movimentos parciais
para obter resultados médios, assustar, intimidar.
Quando atacar, ataque para aniquilar
o mais rápido possível.
Sobretudo: não ameace, não anuncie em movimentos
ou palavras que você vai atacar.
- "Aquilo tudo era bobagem, pensou. em guerra, não há leis. Ou há?"
Alguma aplicação ao xadrez? Acredito que sim.

domingo, 2 de março de 2008

Da janela.


A rua que ele morava era pequena. Assim, olhando da janela, ele conseguia ver seu começo e seu fim, tudo em uma virada de cabeça, em uma passada de olho. O nome da rua tinha nome de presidente, Floriano Peixoto. Isso ele tinha aprendido na escola. Mas as vezes se questionava porque uma rua tão pequena tinha nome de um presidente. Presidente não é tipo de gente importante?

E era dali mesmo daquela janela, a que era do seu quarto - mas que já tinha sido do seus tios, quando meninos e quando a casa era da avó e não sua -, que ele via o tabuleiro. Ele sabia o nome dele e dela, mas isso não importava, sabe? Quando o nome não muda muita coisa, quando o nome é só o nome mesmo... Era assim, ele e ela, todo dia, jogando xadrez na sala.

Ele imaginava que aquela deveria ser a sala, já que ela ficava sentada confortavelmente no sofá, enquanto ele na cadeira de madeira. Devia ser dura aquela cadeira, pensava o menino. E eles eram velhinhos. Deviam estar casados há uns vinte e tantos anos... Ou mais! E era todo dia mesmo: lá pelo finzinho da tarde eles estavam ali, religiosamente, jogando xadrez. E o menino via isso da janela. Via da sua janela aquela janela.

-Parece até televisão!, foi o que ele pensou um dia. E era bonito assim, a rua parecer a sua sala: a rua inteira cabia dentro da janela, e a TV eram aqueles velhinhos ali, todo dia, feito novela, jogando xadrez. As vezes eles conversavam, as vezes não. Dava para perceber porque a rua era pequena, e daí dava para ver de pertinho eles mexendo a boca. Mas as vezes ficavam tão quietos que o menino não entendia o porquê daquele silêncio sinistro. Eles devem ter brigado!, é o que ele pensou nesse outro dia.

E a curiosidade pelo xadrez veio daí. De ver, todo dia, toda tarde, aqueles dois velhinhos casados por mais tempo que sua vida inteira, jogando xadrez. As vezes falando, as vezes calados. Mas ali, sempre. E ele acompanhando tudo, da janela.


O olho da gente é uma janela.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

L´image est tout.

Marcel Duchamp jogando xadrez...

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Era um menino.

Era um menino. Desses do tipo mais comum nos subúrbios dos Estados Unidos: sem muito dinheiro, sem muitos sonhos, sem muito o que fazer. Mas tinha uma mãe e uma irmã. Enquanto a mãe trabalhava, ele ficava em casa, com a irmã, de papo para o ar, pensando em como ocupar aquele tempo que parecia não passar nunca. E então vieram os jogos, passatempo milenar da humanidade. Veio o xadrez. E então a vida começou.

É por isso que Fischer, Bobby para nós, os íntimos, disse que O Xadrez é a Vida. Para ele, que tinha tudo para ser mais um entre tantos jovens americanos, cercado de oportunidades e possibilidades, mas ao mesmo tempo tão distante e incapaz para elas, a vida realmente começou com o jogo de xadrez. E vejam que foi a irmã que o ensinou (não contive o comentário feminista...).

E justamente aquele que era somente mais um veio a se tornar o único campeão mundial norte-americano, fazendo com que seu país – este mesmo ingrato que lhe negou perdão e abrigo -, configurasse mais uma vez no rol dos grandes feitos. Uma hegemonia precisa disso, de grandes feitos de seus cidadãos. Ainda que esta cidadania seja limitada pelos interesses mais sórdidos, como os de caráter político na Guerra Fria...

Fischer se tornou uma lenda viva-quase-morta, e durante seu desaparecimento a mente daqueles já acostumados ao exercício de pensar – os tais enxadristas – ferveu imaginando o que diabos haveria acontecido com aquele gênio, causando balbúrdia até para aqueles que nem sabiam o que era xadrez. E talvez essa tenha sido sua maior contribuição ao jogo: a polêmica gerou curiosidade, e assim muitos começaram a jogar xadrez influenciados pelos acontecimentos relacionados à Fischer.

Ele se foi. Já estava velho, provavelmente cansado e sem muitas expectativas em relação à própria vida. Foi genial e soube sê-lo. Aproveitou de sua posição e disse o que podia e não podia, foi ousado, excêntrico, bagunçou mentes, deixou políticos com cabelos brancos, intimidou os soviéticos, e simplesmente levou ao limite as potencialidades de um tabuleiro e algumas peças na forma de jogo de xadrez. Suas partidas são exemplos históricos de estética enxadrística. E é assim que lembraremos dele, do artista Fischer. Do menino Bobby. Do enxadrista-menino que sempre brincou com a irmã de jogar xadrez.