"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sobre o eterno retorno

Friedrich Nietzsche, um filósofo alemão muito badalado na contemporaneidade, escrevia no final do século XIX mais um de seus escritos bombásticos, A Gaia Ciência. O impacto dessa obra foi tremendo, pois nela o filósofo reforçou posições como a morte de Deus e a moral relativa. Foi também nessa obra que expôs uma de suas ideias mais interessantes, a saber, o eterno retorno. Assim escreveu:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". (NIETZSCHE, Coleção Os Pensadores, p. 208-209)

Pois é... Muito forte, não?! Imagine só, toda a alegria, mas também o sofrimento, de uma vida inteirinha, tudo repetido da mesma forma, sem mudar absolutamente nada. Aquele garfo que praticamente se sentia no estômago, o sacrifício não previsto, o mate gaveta... Tudo, tudinho, eternamente se reproduzindo... Será que jogaríamos melhor se aplicássemos o "eterno retorno" no xadrez? Ou desistiríamos?



A pergunta que me faço é: se perder dói [e tem que doer, porque um mestre me disse que se não nos importamos com a derrota, é porque não nos importamos mais com o jogo] e vencer nos ressuscita, como lidar com o jogo de xadrez em uma perspectiva do tipo "eterno retorno"? O sabor das vitórias compensaria as derrotas?

Tenho uma possível resposta e uma nova redação para o trecho de Nietzsche. [Sim, a cabeça serve para isso, para ousar!] A resposta é que tudo vai depender do tipo de jogador que se é. O xadrez pode melhorar, as pessoas aprendem as regras, estudam, e se tornam grandes mestres. Ou capivaras de primeira linha. Mas a pessoa-jogador, esse ser dotado de algo exclusivo que é SER, esse permanece. Se sou otimista, tendo a valorizar as derrotas como aprendizado. Ao contrário, considero parar de jogar a cada erro cometido, a cada ponto perdido. [E perder dói!]

O fato é que o xadrez pode nos auxiliar a entender alguns meandros profundos do nosso ser, nossa forma de pensar e lidar com os fatos, com a realidade mutante como é. Se perde, se ganha, às vezes se empata e sobrevivemos. Cada partida que jogamos é um segredo que compartilhamos com nós mesmos. Somente nós sabemos o que se pensa, os absurdos que nos vem durante a avaliação de uma posição, os sentimentos, a ansiedade... Podemos até dividir com alguém, tentar colocar em palavras um turbilhão de processos cognitivos que ocorrem simultaneamente durante uma partida. Ninguém chegará perto de teu segredo além de você.

Nova redação:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: Esta partida, assim como tu jogaste agora e como a jogaste, terás de jogá-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua partida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta estrutura de peões e este final, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!

Observação final: este era para ser um texto divertido de retorno - não eterno - ao blog.