"Assim como o amor e a música, o xadrez tem o poder de tornar os homens felizes." (Tarrash)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A tal hegemonia russa... (Ou uma interpretação sobre um universo particular)


Esse título parece até humorístico. Mas não é, eu garanto. É a mais pura verdade: os russos dominam o xadrez de tal modo que podemos dizer sim, com ou sem reticências, que eles são a hegemonia no xadrez. As reticências entram, então, para deixar no ar a dúvida, o mistério e a curiosidade não invasiva de entender porque, ou melhor, os porquês, no plural e com acento. Porque os motivos são substantivos, e eu tenho uma idéia sobre um deles.

Vejam a literatura russa. Eu tive contato com ela recentemente por duas linguagens: o teatro e o livro. Textos que tomam vida de forma diferente. Em ambas tive a oportunidade de perceber uma característica que me saltou aos olhos. Como toda arte que se preze, e que se sustenta no tempo, ela diz algo sobre o universo em que é criada, imaginada, diz sobre as pessoas que estão ali, mesmo que isso não seja verdade. A arte tem algo a dizer, e isso é inquestionável. O que ela diz é interpretação, e talvez a percepção coletiva de determinados aspectos crie o consenso, e a estética num segundo momento. Mas vejam: os russos, o povo russo, e a pessoa russa sofrem de uma frieza impressionante. Explico-me.
Eles são de natureza introspectiva, falam pouco e quando dizem, dizem muito. São breves e objetivos, diretos, e talvez por isso às vezes alcancem a crueldade quase sem querer. Notem que eu disse quase. Quase porque são irônicos, e orgulhosos disso. Sustentam uma imagem egoísta e independente, apesar do sofrimento e da dor. Apesar do comunismo e uma projeção forjada do que seja, então, esse tal "coletivo", esse eu que somos nós e que diz nada sobre ninguém.

[Cito uma passagem da peça "Não Sobre o Amor" - título sugestivo para uma obra russa, não? - que diz: "Porque quando você me diz o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, no terceiro quanto eu já estou pensando em outra coisa..."]

E por tudo isso chegam a uma profundidade admirável, compreendem a fundo e, portanto, parafraseando Pessoa, vêem muito e entendem muito o que tem visto. Observadores atentos, detalhistas do cotidiano, sugando a grandeza do pequeno e, diante do grande que são, tudo fica enorme. A dor, principalmente. E repito: sofrem. Desesperadamente. De terno e gravata. E um livro de xadrez na mão.

O xadrez entra nesse universo como ponte entre toda a profundidade e a compreensão do ser, e a projeção egoística desse conteúdo em um plano, o tabuleiro. Ali pode, e segundo os russos, deve-se ser cruel. Mas com estilo e elegância, sempre. Ali a precisão é louvada, e os detalhes somados ao entendimento da complexidade tornam-se belos, extremamente belos e univocadamente os melhores até hoje visto.

Menciono dois artistas: Kasparov e Karpov. O primeiro com sua ousadia arrebatadora, criatividade invejável e precisão assustadora. O segundo, com posições elegantes e limpas, abarrotada de detalhes sórdidos e belíssimos, calculados sem alteração das expressões faciais e olhares breves direto ao olho do oponente. Eis duas belas representações do espírito artístico russo, aplicado a uma arte, o xadrez.

Seremos nós, brasileiros do samba de bamba, capazes desse ceticismo todo diante do jogo, ou seja, da vida? Fica a questão que não sei responder. Mas perguntas valem mais que respostas em determinados momentos, como estes:



ontem

hoje

sempre

4 comentários:

Anônimo disse...

É interessante notar que esse tipo de personalidade, moldada diretamente pela cultura(e qual não é) e tida como fria e triste, leva os países que a possuem a sucessos notórios nas mais variadas áreas que se possa imaginar. Isso me faz questionar se a vida em um estado quase constante de alegria, que é tida como padrão ouro para a maioria, é realmente superior.
Sinceramente, eu creio que viver com alegria é muito mais fácil, porém nem de longe é melhor.

William Schineider Rabelo disse...

Olá... conheci o blog recentemente (a mais ou menos 20 minutos) e vivo atrás de problemas de xadrez...

peço humildemente para postarem... rs

um grande abraço

William Schineider Rabelo

Paulo Antonio dos Santos disse...

Olá Taís. Por falar em russo, você tem as legendas em português para o filme "Febre do Xadrez"? Obrigado!

PC disse...

Bela Taís,

Não canso de repetir isso, pois a beleza está na alma, o resto são projeções. A primeira coisa introjetada por um povo é a sua paisagem! Passam a fazer parte da vida e da personalidade de quem vive intensamente seu meio integralmente. Nesse meio reproduzem na carne, de geração a geração, todas as nuanças do sofrimento pela vida gerando amor, dor e resignação pela luta constante, que a todo instante queima na alma! O sofrimento inventou a beleza da vida. Isso é puramente o que se chama de humano! ...

Cavaleiro de Caíssa