Esse título parece até humorístico. Mas não é, eu garanto. É a mais pura verdade: os russos dominam o xadrez de tal modo que podemos dizer sim, com ou sem reticências, que eles são a hegemonia no xadrez. As reticências entram, então, para deixar no ar a dúvida, o mistério e a curiosidade não invasiva de entender porque, ou melhor, os porquês, no plural e com acento. Porque os motivos são substantivos, e eu tenho uma idéia sobre um deles.
Vejam a literatura russa. Eu tive contato com ela recentemente por duas linguagens: o teatro e o livro. Textos que tomam vida de forma diferente. Em ambas tive a oportunidade de perceber uma característica que me saltou aos olhos. Como toda arte que se preze, e que se sustenta no tempo, ela diz algo sobre o universo em que é criada, imaginada, diz sobre as pessoas que estão ali, mesmo que isso não seja verdade. A arte tem algo a dizer, e isso é inquestionável. O que ela diz é interpretação, e talvez a percepção coletiva de determinados aspectos crie o consenso, e a estética num segundo momento. Mas vejam: os russos, o povo russo, e a pessoa russa sofrem de uma frieza impressionante. Explico-me.
Eles são de natureza introspectiva, falam pouco e quando dizem, dizem muito. São breves e objetivos, diretos, e talvez por isso às vezes alcancem a crueldade quase sem querer. Notem que eu disse quase. Quase porque são irônicos, e orgulhosos disso. Sustentam uma imagem egoísta e independente, apesar do sofrimento e da dor. Apesar do comunismo e uma projeção forjada do que seja, então, esse tal "coletivo", esse eu que somos nós e que diz nada sobre ninguém.
[Cito uma passagem da peça "Não Sobre o Amor" - título sugestivo para uma obra russa, não? - que diz: "Porque quando você me diz o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, no terceiro quanto eu já estou pensando em outra coisa..."]
E por tudo isso chegam a uma profundidade admirável, compreendem a fundo e, portanto, parafraseando Pessoa, vêem muito e entendem muito o que tem visto. Observadores atentos, detalhistas do cotidiano, sugando a grandeza do pequeno e, diante do grande que são, tudo fica enorme. A dor, principalmente. E repito: sofrem. Desesperadamente. De terno e gravata. E um livro de xadrez na mão.
O xadrez entra nesse universo como ponte entre toda a profundidade e a compreensão do ser, e a projeção egoística desse conteúdo em um plano, o tabuleiro. Ali pode, e segundo os russos, deve-se ser cruel. Mas com estilo e elegância, sempre. Ali a precisão é louvada, e os detalhes somados ao entendimento da complexidade tornam-se belos, extremamente belos e univocadamente os melhores até hoje visto.
Menciono dois artistas: Kasparov e Karpov. O primeiro com sua ousadia arrebatadora, criatividade invejável e precisão assustadora. O segundo, com posições elegantes e limpas, abarrotada de detalhes sórdidos e belíssimos, calculados sem alteração das expressões faciais e olhares breves direto ao olho do oponente. Eis duas belas representações do espírito artístico russo, aplicado a uma arte, o xadrez.
Seremos nós, brasileiros do samba de bamba, capazes desse ceticismo todo diante do jogo, ou seja, da vida? Fica a questão que não sei responder. Mas perguntas valem mais que respostas em determinados momentos, como estes:

ontem
hoje
sempre
4 comentários:
É interessante notar que esse tipo de personalidade, moldada diretamente pela cultura(e qual não é) e tida como fria e triste, leva os países que a possuem a sucessos notórios nas mais variadas áreas que se possa imaginar. Isso me faz questionar se a vida em um estado quase constante de alegria, que é tida como padrão ouro para a maioria, é realmente superior.
Sinceramente, eu creio que viver com alegria é muito mais fácil, porém nem de longe é melhor.
Olá... conheci o blog recentemente (a mais ou menos 20 minutos) e vivo atrás de problemas de xadrez...
peço humildemente para postarem... rs
um grande abraço
William Schineider Rabelo
Olá Taís. Por falar em russo, você tem as legendas em português para o filme "Febre do Xadrez"? Obrigado!
Bela Taís,
Não canso de repetir isso, pois a beleza está na alma, o resto são projeções. A primeira coisa introjetada por um povo é a sua paisagem! Passam a fazer parte da vida e da personalidade de quem vive intensamente seu meio integralmente. Nesse meio reproduzem na carne, de geração a geração, todas as nuanças do sofrimento pela vida gerando amor, dor e resignação pela luta constante, que a todo instante queima na alma! O sofrimento inventou a beleza da vida. Isso é puramente o que se chama de humano! ...
Cavaleiro de Caíssa
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